O primeiro dos 85 verbetes de outros tantos gafanhões que contribuíram, mais regularmente, para a construção da igreja matriz, que foi inaugurada em 1912 (In GAFANHA N.ª S.ª da Nazaré, de Manuel Olívio da Rocha e Manuel Fernando da Rocha Martins - edição de 1986)
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O tio João era um precioso poço de conhecimentos das pessoas das Gafanhas. Dirigia-se às pessoas, identificando-as pelo nome próprio, e a todas tratava por tu, como se fora avô respeitador e respeitado. Se eu queria conhecer alguma coisa do passado deste povo a que também pertencia, bastava lançar-lhe uma pergunta, como desafio. A partir daí, ele logo dissertava com saber e graça, relatando acontecimentos e hábitos, ao estilo de quem conta estórias que me transportavam aos tempos dos meus bisavós, que não conheci.
Muitas vezes me falou do espírito de entreajuda nas fainas agrícolas, no fabrico de adobes e na construção das casas, pois que, desde os primórdios da Gafanha, se cultivou o princípio de que “quem casa quer casa”. E dos róis de gado, associações mútuas que garantiam o pagamento do prejuízo causado pela morte do boi ou da vaca, animais que, para além da ajuda nos trabalhos agrícolas, eram o mealheiro dos agricultores.
Certa vez falou-me das tão badaladas rivalidades existentes entre os habitantes dos lugares da Chave e do Bebedouro, por causa da construção da igreja matriz, que foi inaugurada em 14 de Janeiro de 1912.
Contou ele: “Alguns dias antes da inauguração e por ordem da Comissão e do senhor Prior Sardo fui à capela que se situava na Chave, acompanhado de alguns homens, com a missão de transportarmos as imagens para a nova igreja que ainda nem sequer estava concluída.
Era dia da semana e a missa terminou por volta das sete horas da manhã. Era ainda noite, portanto, e, talvez por isso, não houve oposição dos vizinhos da capela que, segundo se dizia, não deixariam tirar as imagens nem os objectos de culto.
Num outro dia, trouxemos os altares, dos quais só aproveitaram dois, porque os outros eram de canto.
Nem desta vez houve barulho como se esperava e alguns vizinhos da capela ainda nos ajudaram a carregar os altares e nos emprestaram cordas. E repare que nesse dia apareceu muita gente.
Trouxemos também o sino que é o pequeno da nossa actual igreja, mas a pedra de ara só veio no próprio dia da inauguração”. (Timoneiro, Maio de 1971).
Afinal, como tantas vezes me confidenciou o tio João, as rivalidades não eram assim tantas entre os diversos lugares da Gafanha da Nazaré. Aliás, tem-se mantido na índole dos gafanhões das diversa gerações um certo espírito cordato e de cooperação mútua, bem patente nas inúmeras associações que ao longo dos tempos nasceram e se desenvolveram nesta terra.
Como prova elucidativa do que me dizia, em 1938 foi criada a Cooperativa Eléctrica da Gafanha da Nazaré, para fornecer energia a quem o desejasse e fosse admitido como sócios. Que eu saiba, a ninguém foi recusado esse direito de se associar à Cooperativa, que só em 1975, por força da nacionalização da distribuição da energia eléctrica, foi transformada na Cooperativa Cultural da Gafanha da Nazaré. Desta nasceu, pouco tempo depois, a Cooperativa Rádio Terra Nova, que ainda hoje é um baluarte, em parceria com a cooperativa-mãe e com outras instituições, na difusão da cultura gafanhõa e concelhia.
Posso dizer, com propriedade, e parafraseando uma associada, que a Cooperativa Eléctrica da Gafanha da Nazaré, “que deu luz às gentes da Gafanha da Nazaré, morreu para passar a dar a luz da cultura às novas gerações”.
Mas a história da Cooperativa Eléctrica da Gafanha da Nazaré, que ainda não foi feita, não deixará de registar a razão da sua fundação. O Farol da Barra, que está no concelho de Ílhavo, mas é conhecido por Farol de Aveiro, estava a necessitar de ser electrificado.
A sua lâmpada rotativa, que assinalava aos marinheiros a localização da barra, foi alimentada a petróleo até 1936. A energia eléctrica seria um processo mais funcional, mais limpo e mais barato. E assim, depressa se concluiu que era urgente “transportar” a energia até ao Farol, o que veio a acontecer nesse mesmo ano. Para lá chegar, os postes e cabos saíram de Ílhavo e atravessaram toda a Gafanha da Nazaré, sem se estudar a hipótese, imediata, de esta freguesia, já com certo nível económico e industrial (estaleiros e secas de bacalhau, por exemplo), poder usufruir daquele bem, que era então, como presentemente ainda o é, um grande sinal de progresso.
De certo modo revoltados, os gafanhões resolveram associar-se para também terem energia eléctrica nas suas habitações e nos seus comércios e indústrias. Mesmo assim, não foi tarefa fácil e uma cláusula do contrato com a União Eléctrica Portuguesa estabelecia que a Cooperativa Eléctrica apenas poderia ser distribuidora da energia, desde que ligada aos Serviços Municipalizados de Ílhavo, durante 20 anos, prorrogáveis, se não houvesse denúncia do acordo, nos prazos legais, por qualquer das partes.
Fernando Martins
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